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Terça, 16 Junho 2020 15:11

Mythic Quest - Por que você precisa conhecer?

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Tudo leva a crer que eles estão em um escritório como qualquer outro. Porém, as aparências enganam. Brigas de egos, excessivas horas extras sem remuneração e um ambiente tóxico, repleto de machismo, assédio moral e violência gratuita. Esses são os personagens principais de "Mythic Quest: Raven’s Banquet", lançada em fevereiro de 2020 pela Apple TV +. Hoje, vamos entender por que esta produção é importante para o mercado audiovisual e quais são os legados que este sitcom pode deixar para melhor contextualizar a vida real de quem trabalha na indústria de videogames.

Primeiro, o que é "Mythic Quest"? Criada pelo trio Rob McElhenney, Charlie Day e Megan Ganz, conhecidos pela série "It’s Always Sunny in Philadelphia" (da FX), a série apresenta o cotidiano de um estúdio de desenvolvimento de videogames. O conceito da série nasceu após um encontro de McElhenney com a empresa francesa de vídeo games Ubisoft. O criador de "Mythic Quest" foi convidado para conhecer a sede da companhia em Montreal, que ofereceu suporte na confecção dos personagens virtuais e insights aos roteiristas para melhor contextualizar a narrativa da comédia.   

Apesar do forte tom cômico e, por vezes, satírico, a atração aponta para temas sensíveis da indústria, que não para de crescer globalmente. Muitos deles são próximos às questões já levantadas por outros setores do entretenimento, como assédio, machismo e abuso de poder, mas o grande feito deste produto em específico é elevar a discussão para o patamar televisivo. Confira o trailer (em inglês)

Assim como outros movimentos insurgentes que clamam por mais representatividade, equidade e respeito no trabalho, trazer o debate para o território da arte torna-se fundamental para problematizar a questão para além dos muros dos estúdios de games. Esse é um dos méritos de Mythic Quest e, até por isso, entendo que a série possa incitar uma faísca criativa no segmento audiovisual e direcionar o olhar e a disposição dos criadores para refletir e representar mais e melhor as mazelas e as conquistas da indústria gamer. Conheça o elenco da série:

Indo um pouco mais fundo na história, temos Rob McElhenney interpretando o egocêntrico Ian Grimm. Diretor criativo do estúdio, ele funciona como o maestro da orquestra, lançando ideias e provocando seus funcionários a trazer o melhor de si para os jogos. Porém, a maneira como ele estimula a equipe é desgastante e inadequado, para dizer o mínimo. Ian é um homem inseguro, que mascara seus medos com discursos insuflados de si mesmo. E não mede esforços para reduzir o outro em prol do seu sucesso individual. Apesar de talentoso e visionário, suas decisões acabam por torná-lo um líder tiranicamente simpático, mas igualmente idiota.

Ian Grimm, o egocêntrico diretor criativo

Seu principal braço na corporação é Poppy Li, interpretada por Charlotte Nicdao, atriz australiana que brilha nos episódios e merece ser observada com atenção. Ela é a engenheira-chefe responsável por comandar a equipe que desenvolve os códigos de programação para os jogos. Apesar disso, sua função número 1 é lidar com os arroubos criativos de Ian e torná-los realidade, mesmo que isso custe seu sono e sua qualidade de vida. Poppy é o peso que traz coerência para a empresa e controla moderadamente as loucuras do diretor criativo. Constantemente, ela tenta ter sua voz ouvida pelos membros da alta cúpula, mas acaba por desidratar em meio ao machismo tóxico de seus pares. Há quase 10 anos ao lado de Ian, Poppy tem um misto de gratidão com insatisfação, um sentimento que reverbera ao longo de todos os episódios.  

Poppy Li, a quase sensata no meio dos insanos

No campo das medidas práticas, temos David Brittlesbee (David Hornsby), o produtor-executivo que precisa equilibrar as demandas do artístico com o pragmatismo dos investidores. Sua jornada é repleta de fracassos e medos, principalmente por não querer desagradar nenhum dos lados. Ao tomar essa decisão, David é visto como uma marionete que precisa colocar a cara a tapa para deixar Ian brilhar. A postura do produtor-executivo é colocada em xeque até por sua assistente, que nutre uma admiração galopante pelo jeito macho alfa de Ian. Na história, David é o representante daquele profissional que veste um cargo sem ter as roupas certas para isso.

David Brittlesbee, o produtor-executivo que vive na corda bamba

Mas se o assunto é dinheiro, temos que chamar Brad Bakshi (Danny Pudi), o chefe de monetização do estúdio. Seu olhar é certeiro, mas totalmente inescrupuloso. Ambicioso em último grau, ele parece ter cifrões refletidos em seus olhos. O que poderia ser uma atitude saudável torna-se ácida e corrosiva, algo que aponta para uma crítica contundente ao canibalismo capitalista do mercado. Brad passa por cima de qualquer direito trabalhista, ética ou suas próprias leis em prol do dinheiro. Por ser visto como o homem que faz a verba entrar, quase ninguém questiona seus métodos. A única voz contrária é Poppy, que acaba por sucumbir ao perceber que a empresa está muito conectada às práticas de Brad para tê-lo longe do escritório.

Brad Bakshi, o homem do dinheiro

A mente por trás dos diálogos e das narrativas dos jogos de Ian é C.W Longbottom (F. Murray Abraham). O único representante acima dos 60 na empresa é um homem cheio de histórias para contar, que parece um corpo estranho naquela empresa repleta de jovens hiper conectados. C.W. ainda redige seus textos em sua inestimável máquina de escrever e sempre está a um gole alcoólico de distância de uma grande ideia que transformará o lampejo criativo de Ian em um contexto com início, meio e fim. Para a série, o personagem atua como um contraponto interessante entre a vivência em um mundo analógico e a juventude habituada ao 4G e outras tecnologias que modificaram o relacionamento interpessoal.  

C.W, o criativo da máquina de escrever

Por falar em juventude, "Mythic Quest" consegue agregar diferentes perfis neste segmento. Dos personagens com mais visibilidade, temos Jo (Jessie Ennis), Dana (Imani Hakim), Rachel (Ashly Burch) e Pootie Shoe (Elisha Henig). Jo é assistente de David e representa uma garota conservadora americana, com atitudes agressivas e um toque de psicopatia. Tem fixação por Ian e repele qualquer rara proposta ou comentário progressista na empresa.

Dana e Rachel são as responsáveis por testarem os jogos para identificar bugs antes dos games serem lançados. A convivência das duas se estreita ao longo do tempo. Rachel é lésbica e tem um crush em Dana, que não corresponde, mas não repele a amiga. Na série, Dana e Rachel acabam por simbolizar a juventude que sonha trabalhar em uma empresa de videogames, mas se vê envolta e incomodada com uma cultura tóxica de desrespeito, baixa representatividade das minorias sociopolíticas e machismo.

Por fim, Pootie Shoe é uma alusão cômica ao boom dos youtubers e streamers mirins. Ele é saudado como uma referência na crítica de jogos e sua opinião é capaz de fazer um game prosperar ou afundar. Pootie tem 14 anos, é articulado e com linguajar adulto, mas o que sua presença na série acaba por salientar é o nível de ódio que a indústria movimenta. O garoto é alvo de xingamentos dos funcionários da empresa de Ian toda vez que lança um review, seja deles ou da concorrência. A relação pouco amistosa é refletida também em discursos e comentários agressivos da audiência, fenômeno crescente com as redes sociais e por meio da ascensão do império da fake news. A máscara virtual que protege os haters é um assunto pouco explorado na série, mas com bastante potencial.

No sentido horário: Jo, Rachel e Dana, Pootie Shoe

De maneira geral, "Mythic Quest" é um bom ensaio que introduz temas relevantes da indústria gamer em um patamar mais amplo e acessível para a discussão. A escolha pelo tom cômico é divertida, mas determinadas atitudes passam a não ter a mesma graça do início porque soam como se o discurso dominante na indústria fosse o correto. O fato de a ficção tratar assuntos reais sem um maior comprometimento com a seriedade dos temas e suas consequências no mundo é preocupante. Machismo, abuso, assédio moral, direitos trabalhistas, preconceito e representatividade são questões atuais e ignorá-las é, no mínimo, uma postura condenável. Tais ajustes poderão ser implementados na segunda temporada da série, que já foi confirmada pela Apple antes da primeira estrear na plataforma.

Mas o grande feito de "Mythic Quest" é exatamente esse, trazer o debate à tona. A série da Apple TV+ acende um alerta importante para o audiovisual: precisamos falar e representar a realidade de quem trabalha na indústria gamer. Há pouquíssimas produções fictícias e documentais sobre esse universo. Falar sobre games não é mais algo de nicho, é mainstream. Que os produtores abram seus olhos para a oportunidade de narrativas que esse setor do entretenimento possui e passem a desenvolver cada vez mais histórias sobre os avanços e desafios do mundo gamer.   

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Pedro Couto

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